Laicidade e Constituição, eis a questão!
Tramita na Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda à Constituição n. 99/2011, que, originalmente articulada pela bancada evangélica, pretende incluir as “associações religiosas de âmbito nacional” no rol de sujeitos legitimados para propor Ações Diretas de Inconstitucionalidade e Ações Declaratórias de Constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. Na prática, essa alteração do art. 103 da Carta Magna autorizaria tais entidades a impugnar qualquer lei ou ato normativo federal ou estadual que, em princípio, contrarie os interesses e crenças de seus segmentos.
Embora a democratização do sistema de justiça seja uma agenda prioritária dos movimentos sociais brasileiros, a qual a Rede Nacional de Religiões Afro-brasileiras e Saúde(RENAFRO) partilha e endossa, é certo que medidas como a PEC 99/2011 não consolidam, antes minam o Estado Democrático de Direito em sua essência laica. Isso porque, tecnicamente, há instrumentos outros de participação na formação das decisões judiciais – como é o amicus curiae em casos de especial repercussão–, bem como meios processuais de defesa da honra e da dignidade dos variados grupos religiosos – a exemplo da Ação Civil Pública – disponíveis igualitariamente para toda a sociedade.
A proposta é, ainda, descabida, na medida em que as associações religiosas de âmbito nacional já contam, em sua maioria, com representantes na esfera legislativa capazes de exercer o controle prévio de constitucionalidade durante a elaboração das leis e não a posteriori. Ou seja: a ampliação apenas de prerrogativas suas tende a gerar efeitos discriminatórios indiretos, ao reforçar a assimetria de poder das vertentes religiosas institucionalmente hegemônicas no país em face das demais.
No atual cenário de acirramento das tensões no campo religioso e de crescente perseguição das comunidades de matriz africana, entendemos que o princípio constitucional da laicidade exige não só a equidistância do Estado – inclusive do Poder Judiciário – em relação a todas as confissões existentes, como também a formulação e a implementação de políticas públicas e mecanismos de proteção daquelas que se achem ameaçadas em sua integridade e liberdade de culto. Nesse sentido, permitir que intepretações religiosas pautem a aplicação das normas jurídicas é violar os direitos das minorias e a diversidade cultural do povo-de-terreiro e de todos os povos tradicionais, em suas formas particulares e ancestrais de espiritualidade. Eis a questão: numa nação multicultural, Bíblia e Constituição devem conviver, sem, contudo, confundir-se, o mesmo valendo para todos os distintos livros e dogmas sagrados.
Por todo o exposto, a RENAFRO - Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde vem manifestar-se em desacordo com a PEC 99/2011 e conclamar a todas e todos a cuidar do futuro e da saúde de nossa democracia!
0 Comentários