Independentemente da realização de cirurgia de adequação sexual, é
possível a alteração do sexo constante no registro civil de transexual
que comprove judicialmente a mudança de gênero. Nesses casos, a
averbação deve ser realizada no assentamento de nascimento original com a
indicação da determinação judicial, proibida a inclusão, ainda que
sigilosa, da expressão “transexual”, do sexo biológico ou dos motivos
das modificações registrais.
O entendimento foi firmado pela Quarta Turma do Superior Tribunal de
Justiça (STJ) ao acolher pedido de modificação de prenome e de gênero de
transexual que apresentou avaliação psicológica pericial para
demonstrar identificação social como mulher. Para o colegiado, o direito
dos transexuais à retificação do registro não pode ser condicionado à
realização de cirurgia, que pode inclusive ser inviável do ponto de
vista financeiro ou por impedimento médico.
No pedido de retificação de registro, a autora afirmou que, apesar de
não ter se submetido à operação de transgenitalização, realizou
intervenções hormonais e cirúrgicas para adequar sua aparência física à
realidade psíquica, o que gerou dissonância evidente entre sua imagem e
os dados constantes do assentamento civil.
Sexo psicológico
O relator do recurso especial da transexual, ministro Luis Felipe
Salomão, lembrou inicialmente que, como Tribunal da Cidadania, cabe ao
STJ levar em consideração as modificações de hábitos e costumes sociais
no julgamento de questões relevantes, observados os princípios
constitucionais e a legislação vigente.
Para julgamento do caso, o ministro resgatou conceitos essenciais
como sexo, identidade de gênero e orientação sexual. Segundo o ministro,
as pessoas caracterizadas como transexuais, via de regra, não aceitam o
seu gênero, vivendo em desconexão psíquico-emocional com o seu sexo
biológico e, de um modo geral, buscando formas de adequação a seu sexo
psicológico.
O relator também lembrou que, apesar da existência de princípios como
a imutabilidade do nome, dispositivos legais como a Lei de Registros
Públicos preveem a possibilidade de alteração do nome que cause situação
vexatória ou de degradação social, a exemplo das denominações que
destoem da aparência física do indivíduo.
Direito à felicidade
Na hipótese específica dos transexuais, o ministro Salomão entendeu
que a simples modificação de nome não seria suficiente para a
concretização do princípio da dignidade da pessoa humana. Para o
relator, também seriam violados o direito à identidade, o direito à não
discriminação e o direito fundamental à felicidade.
“Se a mudança do prenome configura alteração de gênero (masculino
para feminino ou vice-versa), a manutenção do sexo constante do registro
civil preservará a incongruência entre os dados assentados e a
identidade de gênero da pessoa, a qual continuará suscetível a toda
sorte de constrangimentos na vida civil, configurando-se, a meu juízo,
flagrante atentado a direito existencial inerente à personalidade”,
ressaltou o relator.
Exemplos internacionais
O ministro também citou exemplos de países que têm admitido a
alteração de dados registrais sem o condicionamento à cirurgia. No Reino
Unido, por exemplo, é possível obter a certidão de reconhecimento de
gênero, documento que altera a certidão de nascimento e atesta
legalmente a troca de identidade da pessoa. Iniciativas semelhantes
foram adotadas na Espanha, na Argentina, em Portugal e na Noruega.
“Assim, a exigência de cirurgia de transgenitalização para viabilizar
a mudança do sexo registral dos transexuais vai de encontro à defesa
dos direitos humanos internacionalmente reconhecidos – máxime diante dos
custos e da impossibilidade física desta cirurgia para alguns –, por
condicionar o exercício do direito à personalidade à realização de
mutilação física, extremamente traumática, sujeita a potenciais sequelas
(como necrose e incontinência urinária, entre outras) e riscos
(inclusive de perda completa da estrutura genital)”, destacou o relator.
Acompanhando o voto do relator, a Quarta Turma concluiu que o chamado
“sexo jurídico” – constante do registro civil com base em informação
morfológica ou cromossômica – não poderia desconsiderar o aspecto
psicossocial advindo da identidade de gênero autodefinida pelo
indivíduo, “o qual, tendo em vista a ratio essendi dos registros públicos, é o critério que deve, na hipótese, reger as relações do indivíduo perante a sociedade”.
Complexidades jurídicas
O ministro Salomão também apontou que as complexidades jurídicas
geradas pelo reconhecimento dos direitos dos transexuais não operados já
são perceptíveis no universo das pessoas que decidiram se submeter à
cirurgia.
“Ademais, impende relembrar que o princípio geral da presunção de
boa-fé vigora no ordenamento jurídico. Assim, eventuais questões novas
(sequer cogitáveis por ora) deverão ser sopesadas, futuramente, em cada
caso concreto aportado ao Poder Judiciário, não podendo ser invocados
receios ou medos fundados meramente em conjecturas dissociadas da
realidade concreta”, concluiu o ministro ao acolher o recurso especial
da mulher.
O número deste processo não é divulgado em razão de segredo judicial.
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